Interessante como certas coisas tomam rumos diferentes na nossa vida e às vezes retornam com profusão e sentido maior... Comecei a graduação em Filosofia imerso nas leituras de Nietzsche, mesmo sem entender muito do que se tratava, embora crente que estaria no rumo. Com o tempo, e com as leituras dos clássicos, me distanciei deste autor exatamente por aceitar que para entendê-lo, deveria, antes, compreender os problemas e autores que ele tratava/criticava. Para isso, era essencial o estudo dos clássicos. Conclui que precisava estudar o prévio e com o tempo, este se tornou o necessário e o bastante... Por pouco tempo...
No meio da graduação, comecei a me interessar por Lógica e Filosofia da Linguagem. Foi um flerte rápido, efêmero, de efeito inebriante, produzindo um frenesi inicial e deixando marcas profundas e jamais removidas, clamando por uma recaída ou feedback, mesmo frente a novas resoluções e momentos. Acho que é isso que chamam em outros contextos de “paixão”. Mas como toda paixão, passou, embora deixando rastros... Logo em seguida me veio a obra de Jean Paul Sartre, causando impacto semelhante ao que Nietzsche promoveu em mim, na inconsequência da juventude. O diferencial é que agora sabia dialogar mais com a tradição filosófica, o que me permitiu mergulhar mais neste filósofo sem correr o risco de me tornar panfletário ou entusiasta demais, como fora com o “bigodudo”.
Em todo caso, como leitor mais curioso do que disciplinado, li apenas os textos básicos de Sartre, e muito do que se comentou sobre ele – como todo “bom” estudante de filosofia no Brasil faz... E o que me motivou nas leituras de Sartre mesmo eu não sendo ateu? Talvez o mesmo que me motivou ler outrora Nietzsche e tempos depois Freud: a capacidade que ambos tiveram de (des)construir significados sem a necessidade de algo estritamente metafísico. Mesmo sendo teísta, a justificativa para valores e comportamentos que transcendem a fundamentação teológica já me causam fervor e admiração, mesmo não concordando por diversas vezes...
Jean Paul Sartre, enquanto existencialista, defende a tese de que “a existência precede a essência”. Isto significa romper com uma cadeia de justificação anímico-metafísica, afirmando que o homem formata a sua existência somente depois de se projetar no mundo. Em outras palavras, não existe um Deus criador, que nos concebeu e criou a partir de uma teleologia própria e prévia. Sendo assim, o homem meramente existe, e a sua “essência” ou projeto será apenas aquilo que ele fizer de si mesmo. O homem em Sartre, portanto, nada mais é do que o seu projeto, um “ser-para-si”, aberto à possibilidade de construir ele próprio a sua existência, sem que para isto haja modelo ou essência para lhe orientar o caminho. Seu futuro se encontra disponível e aberto, e dos dizeres de Sartre: “condenado a ser livre”... Se no homem a existência “precede a essência”, ele é responsável por aquilo que é ou por suas escolhas, uma vez que nada pode condicionar definitivamente o seu comportamento, nem uma maldição hereditária, nem um “gene egoísta”. Escolher o que ser é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, como e o porquê desta escolha...
Sartre afirma que: “não importam o que os outros fizeram de você. O que importa é o que você fará de ti a partir do os outros supostamente o fizeram”. Isto implica em admitir que, embora possamos ser pré-condicionados por fatores, pessoas e crenças, o que torna inestimável o valor de nossas ações é administração que operamos das circunstâncias. Neste sentido, somos intrinsecamente e, por que não dizer, exclusivamente responsáveis pelo nosso ser-no-mundo. Somos, portanto, livres. Não no sentido meramente arbitrário, de escolhas sem consequências, ou ações sem reações. Somos livres na medida em que temos as condições de escolhas e que não há nada que determine inexoravelmente nosso arbítrio.
O homem, ao perceber que “não há um Deus”, ou um projeto pré-determinado para sua existência se angustia, exatamente por agora experimentar uma verdadeira liberdade. A sentir-se como um vazio, o homem vive a angústia da escolha. Doravante, muitas pessoas não suportam essa angústia, fogem dela, escorando-se naquilo que Sartre nomeia como “má fé”. Tal se traduz por atitude característica do homem que finge escolher, sem na verdade escolher, imaginando que seu destino está traçado, que os valores são dados.
Nossa existência, como pensa Sartre, deve permear a verdadeira liberdade. Tal senda afirma a condição existencial do homem sobre a terra: atesta a sua finitude, estabelece o seu verdadeiro fundamento ontológico, e conclama uma responsabilidade ética frente aos seus atos, uma vez que somente ele é o arauto de seu destino, baluarte de suas escolhas.
Embora tenha me afastado das leituras de Nietzsche, não consigo desvencilhar por completo sua filosofia “aristocrática” daquilo que pensa Sartre sobre a existência humana. Nietzsche afirma que somos produtores de valores e que é preciso identificar os instrumentos sociais que domesticam os indivíduos para que ele aja de acordo com valores dados. Contrapondo, Nietzsche valoriza o “espírito livre”, que recusa a imposição de normas e fórmula prontas de comportamento. Não se trata, portanto, de desprezo por valores, mas de uma atitude necessária de constante questionamento acerca de nossas crenças e padrões valorativos.
O que é central - seja em Nietzsche nos conduzindo à reflexão sobre as “amarras teo-psico-sociais” que condicionam nossos comportamentos a agir de forma não-livre, ou Sartre afirmando que mesmo mediante tais amarras, ainda assim somos responsáveis pelas consequências advindas - é que ambos colocam a autonomia como pedestal necessário ao alicerce da verdadeira “humanização”. Comecei meu interesse em Filosofia por Nietzsche e hoje me vejo emaranhado no pensamento de Sartre, mas inusitadamente com uma aura nietzscheana. O elo ou teia, sem dúvida para tal entrelaçamento ou fator cíclico é exatamente o que pulsa em mim desde a adolescência e que continua vivo, a despeito de “outras amarras”: a inquietação por não aceitar estruturas prontas e acabadas, mas por outro lado, admitir a responsabilidade que uma “náusea sartreana” promove – a verdadeira “boa fé”, enfim, por aceitar que embora “só”, somos eternamente livres, doravante, responsáveis pela construção de nossa existência.
Att.
Diego A.
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