sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

"A escola não educa, a escola qualifica o filho educado" (Içami Tiba)


Nesta semana recebi um email encaminhado pelo diretor de uma recente escola que comecei a lecionar. Sempre que sou convidado por instituições de educação básica para dar aulas, sobretudo de Filosofia e Sociologia, a demanda vem acompanhada da expectativa de que eu me converta, num intervalo de 50 minutos semanais, em arauto do evangelho ideológico burguês. Evangelho, porque se trata de uma justificativa moral, cristã, de “construção de valores”; burguês, porque esta prédica está eivada de interesses medíocres.
No fundo, o que se espera é que a Filosofia (entendida ainda por estes como sendo a famigerada “moral e cívica”, do tempo de meus pais) seja o instrumento capaz de levar os infantes ao desenvolvimento de valores que podem ser postos em paralelo, tais como: respeito/servidão; cordialidade/sujeição; cidadania/apatia. O professor, neste caso, verte-se em instrumento de domesticação, além de profissional responsável, na melhor das hipóteses,  por um processo que deveria ter sido iniciado no único lugar onde ele jamais deveria ter saído: o próprio lar.
Há um provérbio que diz que a sociedade é um grande corpo no qual a família é a sua célula-mater. Daí se conclui que uma célula primária doente gera uma metástase que afeta toda a estrutura corporal: “Família doente, sociedade doente”. O que percebo é que a própria sociedade já se deu conta disso, mas não se julga capaz de operar uma profilaxia própria na sua estrutura interna, e com este desvio tenta projetar, a todo (e alto) custo a solução, a cura, para as instituições de ensino. Crê-se que o professor é o médico curador de almas, mas mal sabem que muitas vezes este mesmo vem de um processo também enfermiço, uma vez que faz parte dessa mesma sociedade... Não se enganem... banco de faculdade não faz ninguém, moralmente, melhor ou pior. A verdadeira educação começa em casa e, no máximo, se estende para a Igreja, o Centro Espírita, a Mesquita...
Dentro dessa linha de pensamento, transcrevo abaixo o texto que me foi enviado. Note que se trata de um texto escrito por quem vivencia dois universos profundamente ligados ao comportamento social: a psicologia e a docência. Segue a sua defesa...

Att.
Diego A.





Valores morais na escola: perigoso veneno! 
Na edição passada, meu artigo versava sobre a permissividade dos pais e a insistência da escola em complicar coisas simples, quando deveria simplificar e levar o aluno a resolver seus problemas analisando a forma mais fácil de fazê-lo.
Aí, alguns dos meus cinco leitores trouxeram-me à lembrança o meu comentário final, "A escola ensina, a família educa". Como se geraram polêmicas (que legal, adoro isso!) e certas dúvidas, é importante refletir sobre o fato:
A escola não tem o direito de ensinar valores morais para a criança: esta é uma tarefa da família!
O papel de uma escola que realmente educa para a vida é de analisar os fatos surgidos nas discussões em sala de aula, quando os conteúdos ministrados, sempre de forma contextualizada com a vida e a realidade façam sentido na vida do aluno (só se aprende aquilo que atribuímos sentido ou valor), onde este aprenda a analisar por si só, para que faça suas escolhas com autonomia, ética e responsabilidade.
Educador dizer o que é certo ou errado anula o sujeito e seu poder de análise, põe em risco a liberdade, destrói a autonomia do estado laico e fere o livre arbítrio. Explicar regras e leis, ensinar o que é respeito, ética e responsabilidade é oportunizar ao aluno a liberdade de se pensar prós e contras de cada ato, optando por aquilo que julga mais sensato, mais coerente, justo consigo e com seu meio.
Dar noções de mundo, de cidadania é papel da escola. Dizer o que é certo ou errado é a família que tem o direito e o dever. A escola pode dizer o que é permitido pela LEI e o que CONTRARIA A LEI, pode e deve analisar as conseqüências dos atos, numa reflexão conjunta; ou seja: uma avaliação das escolhas, dos prós e contras de nossos atos, um despertar crítico, mas sem levar alunos a juízos de valor, ditames de ideologia ou a dependência da opinião de outros, muitas vezes incertas.
Não se pode, na escola, por exemplo, dizer que o que os assassinos da menina Isabella fizeram algo certo ou errado: pode-se informar que matar ou machucar alguém é crime, que isto fere as normas sociais e que a sociedade rejeita com veemência tais atitudes. Dizer que roubar ou matar é errado (ou dizer que é certo) é tarefa da família de origem, é claro, muitas vezes preconceituosa, mas ainda é direito da família.
Se a família é estruturada ensina valores, como justiça, honestidade, sinceridade, respeito e valores morais em geral, fazendo a criança se estruturar socialmente. Ao ir à escola, a criança aprende as conseqüências de praticar atos lícitos ou ilícitos, analisa se respeitar os outros lhe dá o direito de exigir respeito e daí deve ser estimulada a tirar suas conclusões. Se a família é desestruturada e ensina valores que ferem leis e valores socialmente aceitos, é na escola que a criança aprenderá as conseqüências de tais ações e aprende alternativas de conduta, e, por si só, exercer suas escolhas verificando e refletindo sobre sua vida, sua educação familiar e concluindo o que é melhor para si. Se a família não educa de forma adequada, não é a escola que deve assumir o papel dos pais. Mas ao ensinar a pensar com ética, responsabilidade e consciência, evitaremos mais famílias inadequadas em breve.
A escola nas últimas décadas absorveu atitudes assistencialistas, ajudando aos governantes inescrupulosos a manter as desigualdades sociais, promoveu, sem saber a falta de senso crítico e a dependência da maioria da população da "santa" ajuda do governo. Também absorveu funções dos pais, dos dentistas, médicos e psicólogos, num arremedo de ajuda verdadeira que só tira a confiança do aluno e sua capacidade de agir e pensar por si só.
Com isto, muitos valores morais "tortos" e opiniões pessoais de professores passaram a ser ensinadas nas salas de aula, abrindo brechas para que desajustes fossem ensinados pela autoridade na sala, raramente questionadas por alunos que em casa têm pouco ou nenhum diálogo com os pais. A seguir, relato algumas "pérolas" ouvidas de seus professores por meus pacientes;
- "Nordestinos aprenderam a ser preguiçosos, quem trabalha e sustenta aquele povo somos nós, aqui do Sul." (racismo, xenofobia, preconceito e erro de conclusão em poucas palavras)
- "Se você leva um soco injustamente, revide! Pague na mesma moeda" (eu ouvi quando era aluno, há menos de vinte anos, de professor que ainda hoje atua).
- "O catolicismo é a primeira religião do mundo, depois vieram outras seitas. Se é a primeira, é a que é mais certa." (O catolicismo é uma religião relativamente nova; é apenas uma das seitas do cristianismo. Existem muitas outras religiões mais antigas)
Eu mesmo ouvi professores falando que faculdade não ajuda ninguém a melhorar de vida e que o certo é agir no "olho por olho, dente por dente". Por sorte sempre questionei tudo, não ficou em mim nada disso. Ufa!
Quando se acredita que professores devem passar valores morais na escola, corremos o risco de termos mestres com desajustes de comportamento ou ideias distorcidas (e não são poucos que possuem preconceito, rancores, medos) sobre o mundo, passando seus valores pessoais como se fossem verdades da vida aos nossos filhos.
Ao demonstrar uma conduta justa, uma avaliação adequada, critérios e métodos, o professor já fala o necessário de suas convicções e valores. E ajuda com isto. Basta... De resto, é ensinar a pensar e refletir antes de agir.
Pensemos nós sobre o que ensinamos e o que devemos ensinar: ciência e justiça ou "achismo" e parcialidade?


Psicólogo clínico e professor universitário (INESA); especialista em Neuropsicologia e Aprendizagem e Mestre em Educação e Cultura.
Email:
 gilmardeoliveira@uol.com.br