terça-feira, 8 de outubro de 2013

O caleidoscópio de minha religiosidade e “As aventuras de Pi”: uma metáfora para o além eternamente desconhecido.

Recentemente assisti a um filme que me chamou muita atenção. Seu título era “As aventuras de Pi”. De fotografia bela e situações improváveis, a narrativa do filme (que depois descobri ser uma adaptação cinematográfica) se desenvolve em torno da sobrevivência de “Piscine Patel” após o naufrágio da embarcação que transportava da Índia para o Canadá toda sua família e propriedades: um zoológico inteiro. À deriva sob uma jangada improvisada anexada a uma pequena embarcação contendo suprimentos e, pasmem, um tigre de bengala não domado, o protagonista busca a sobrevivência sem perder a (múltipla) fé, enfrentando um mar revolto e uma biodiversidade ímpar.
No entanto, o que me despertou no filme tem haver com a própria obviedade da história – o que talvez tenha desagradado parte daqueles que foram em busca de um “As aventuras de Gulliver” e não de uma película que nos conduz a refletir sobre nossa religiosidade ou quanto àquilo que queremos julgar como versão correta e unívoca para nosso sistema conveniente de crenças.
Na história o personagem passa pela assimilação de uma série de valores religiosos e sistemas de crenças, sem, contudo, questionar a possível incoerência entre estes. É curioso, pois há em certo momento um questionamento interno, de força maior do que um possível externo. Ou seja, há um questionamento sobre a motivação de Cristo ou de Deus quanto à parúsia, mas não há, entretanto, um questionamento se a teleologia cristã contradiz o politeísmo hindu, o cabalismo judaico ou o ritualismo islâmico – vertentes estas assimiladas e compartilhadas concomitantemente pelo personagem. 
A historia é narrada pelo protagonista (já mais velho) a um jovem escritor que pretende fazer de sua biografia uma obra literária. Segundo o que fora contado a este, a história de “Pi” (abreviação idiossincrática do nome do personagem) o faria recobrar sua fé em Deus. De modo lúcido, Pi nega essa possibilidade, deixando claro que sua história poderia apenas inspirar, talvez mais do que servir de testemunha para a atestação do suprassensível. De fato, a sobrevivência do personagem poderia ser tida como milagre, dado à sua impossibilidade frente aos elementos descritos na narrativa. Em suas “embarcações”, Pi não se depara apenas com as tortuosidades do mar (limitação de água doce, sol escaldante, feras marinhas, etc), mas com a “companhia” inicial de uma hiena, um orangotango, uma zebra e um tigre de bengala. A sobrevivência de Pi depende da morte paulatina destes e da contenção da natureza de um tigre – que o acompanha e resignifica sua “viagem”. Contudo, o que está em jogo para a “comprovação da existência Deus” não é o “milagre” em si, mas a maneira como este (ou isto) é apresentado pelo personagem ao jovem escritor: Deus trata-se de uma evidência filosófica que escapa ao domínio do empírico, no entanto, o que está em questão é qual “versão” melhor lhe apetece acerca deste “fato”. Este é o mote do filme e o que justifica a concomitância de crenças de Pi. Para ele, Deus é evidente e se manifesta de formas distintas paras as pessoas, cabendo a estas escolherem suas melhores versões. A ele, todas as histórias/versões são belas (e porque não verdadeiras?)...
Trazendo para meu universo, sinto que me identifico com Pi. Todas as versões que ouço de Deus soam a mim como elas realmente se configuram: belas metáforas. Estão longe, no entanto, de se configurarem como sistemas coerentes, logicamente válidos. Para mim, Deus é uma evidência filosófica e isto basta. Podemos no máximo dizer o que Deus não é, mas dizer o que ele seja é muita pretensão intelectual a um passo do fanatismo derivadamente excludente.
Penso que o principal erro de quem se arvora a uma teologia – mais do que julgar a sua como a única e, portanto, verdadeira “versão” de Deus – diz respeito à própria questão que orienta uma possível resposta metafísica. Julgo que Deus é uma questão ontológica e que não faz sentido perguntar pelo “quem”, mas antes pelo “o que” é Deus (ou o que “não” é Deus). Quando perguntamos por quem é Deus, em certa medida, estamos pessoalizando “algo em alguém” e como a história das religiões nos mostra, quando assim o fazemos estamos antropomorfando Deus, ou, subvertendo a metáfora cristã, fazendo Deus à “imagem e semelhança” do homem.
Quando lemos o “velho testamento” a concepção de um Jeová calha muito bem à natureza belicosa do povo hebreu, ávido por guerra a fim de conquistar seu suposto direito de terra. Diferente, portanto, de um possível Deus “neotestamentário” de bondade que é capaz de sacrificar seu “único” filho em prol de uma humanidade torpe – atitude esta completamente contraditória com um Deus que envia um dilúvio como instrumento de higienização da iniquidade de sua criação. No entanto, quando se observa a identidade do povo hebreu sob o domínio do Império Romano - já após os dois êxodos - é de se compreender a ideia de uma divindade “restauradora” (o messias judaico) ou “expiadora” (o messias cristão). Deus, portanto, se configura para além do que possivelmente é, mas a cargo daquilo que os homens anseiam que ele seja (ou resultante de seu complexo existencial, a cadeia própria de significados culturalmente estabelecidos pelo contexto em questão) Parafraseando Freud ao dizer que “quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo”, quando os homens falam de Deus, está mais em questão o que eles próprios sejam, aspiram, anseiam, do que realmente este, de fato, o é...
Talvez seja esta a razão pela quais muitos se afastam da religião ou, de modo mais radical, da crença em Deus. Um mínimo de razoabilidade nos faz perceber que os diversos sistemas de crenças “evoluem” ou se desenvolvem/complexificam aos cargos da cultura e sempre representam as próprias visões de mundo de uma dada sociedade. Além disso, há ainda a multiplicidade dos fenômenos psíquicos ou mesmo dos ditos “milagres” que muitas vezes comportam várias outras explicações ou versões e não somente aquelas convenientes à um dado sistema de crenças. Melhor explicando, mesmo que certos fenômenos pudessem ser de fato parapsíquicos, espirituais, mediúnicos ou miraculosos, eles só apontariam para uma necessária dilatação de nossa compreensão de realidade, dimensão ou cosmo e não necessariamente da atestação de um sistema teológico ou narrativa específica. Desta forma, podemos admitir um milagre, mas não necessariamente uma intervenção de uma “entidade” específica. Podemos até admitir a existência de um complexo espiritual, sem, contudo, termos que aceitar a ideia de um céu/inferno/purgatório, etc. Se Deus realmente existe, mesmo enquanto pessoa, com certeza ele é algo muito mais transcendente do que nossa capacidade de interpretação seja hábil a compreender e se manifesta subliminarmente na vida de todos independente da crença ajuizada desta ou daquela pessoa/grupo/sociedade. As religiões seriam, doravante, instituições de pretensas “patentes de narrativas” sob as outras, nada mais... Qualquer pessoa minimamente esclarecida ou para além de um radicalismo obtuso é capaz perceber estes meandros...
Já passei por vários sistemas de crenças; nasci num lar cristão, frequentei da catequese/missa a cultos protestantes e “sessões de descarrego”, passei um tempo (por experiência familiar) frequentando terreiros umbandistas até que na adolescência tardia me identifiquei com o Kardecismo, do qual militei por quase quinze anos, moldando meu caráter e conferindo um sentido existencial válido até os dias de hoje. Nos últimos anos, retomei a algo que sempre me chamou a atenção desde as primeiras idades: o orientalismo. Andei estudando sobre o Zen Budismo e pela minha experiência budoka, venho buscando compreender certos elementos do Shugendô. Vale mencionar que minha formação acadêmica é na área de humanas (Filosofia e História), portanto, assim como é de praxe nestes cursos, já transversalizei muito com correntes cético-ateias/materialistas, assim como essencialistas, monistas ou fideístas. Desta forma, o fenômeno/objeto religioso sempre fez parte de minha vida, seja vivencialmente, intelectualmente/criticamente ou até “empiricamente”, como atesta somente a mim a minha experiência parapsicológica. (vale mencionar que nunca me afastei da prática mediúnica espírita, embora não me identifique mais com o aspecto institucional ou filosoficamente cristã do Kardecismo brasileiro).
Todas estas experiências, ora conceituais, ora vivenciais, ajudaram a formatar minhas crenças... Mas antes, me levaram – a partir de uma postura crítica – a assumir uma posição cética em relação às narrativas cosmogônicas, não negando o objeto em questão, mas admitindo que uma narrativa seja sempre uma perspectiva (quando há uma boa fé) a partir de uma experiência na maior parte das vezes subjetivas sobre algo que acredito transcender nossa capacidade de entendimento.
Pelas minhas vinculações ao orientalismo (por ser um budoka) e ao Kardecismo (pela minha experiência mediúnica) tomo como fato a possibilidade de transcendência da consciência após a morte física, da possibilidade de intercâmbio parapsíquico, da existência de um cosmo/tao/chi inerente às todas as coisas existentes, assim como outras conceituações de caráter metafísico. Isto, no entanto, não significa que aceito integralmente as explicações que me são ofertadas ou intuídas, ao contrário, me vinculo, antropologicamente, àquelas que mais calham com minha personalidade e expectativa de mundo ideal. Quanto a isso, sou honesto em admitir a fragilidade de todas as minhas crenças, assumindo sempre a postura de “hipótese” mais do que de “fato”, de “epoqué” mais do que “evidência”. Isto me afasta do fanatismo e me aproxima de minha humanidade... Afasta-me de um radicalismo inerente às religiões, do ponto de vista formal, e me aproxima de um sentido filosófico/conceitual muito mais próximo do ao de religare. A questão ontológica para mim diz muito mais respeito a um constante buscar por perguntas muito mais do que por respostas e me contentar provisoriamente (sem imposições a outrem) com aquelas metáforas que mais me parecem belas...
Retomando ao filme, ao Pi narrar sua epopeia em alto mar ao escritor é questionado sobre a veracidade de suas historias, sobretudo quando ele oferta duas versões para um fato (embora haja uma conexão simbólica entre ambos). O fato era a improbabilidade de sua existência. A versão era o “como” ele sobreviveu a isto. Ao perguntar para o escritor qual das versões este mais gostou, o mesmo afirma a mais improvável. Neste caso, o “improvável” não é o impossível, mas o “difícil de acontecer”. No entanto, na narrativa, esta versão foi a que mais apeteceu ao ouvinte e fez mais sentido frente às reais motivações vitais do personagem principal...

Posso tomar Deus como um fato, ou melhor, como uma hipótese filosófica. Pode ser a mais improvável para explicar a complexidade organizacional da natureza, mas não significa que não seja possível. Quanto ao que Deus seja não faço ideia... Quanto ao “quem” ele é, desconfio de todas as narrativas... Quanto ao que ele não é, julgo ter muitas evidências... Quanto ao que ele representa para mim, isto resume todo o sentido do filme: o desconhecido que se apresenta como possível e se torna belo aos meus olhos no limite de minha conveniência... A minha vantagem: não creio que Deus seja “alguém” e isto diz muito, pois ao coloca-lo como “algo” ou como “possível”, isto abre intelectualmente uma porta para o desconhecido e me livra temporariamente do radicalismo de achar que minha versão é a única e, portanto, verdadeira, ao mesmo tempo em que me afasta de uma conveniência em negar tudo aquilo que não compreendo ou meramente rechaçar algo simplesmente porque todos se equivocam ao impô-lo.

Att. Diego A.