“De
ti só se ouve dizer que abomina o mundo... só espero que não se
detenhas neste abrigo transitório” (SOHO, Takuan)
Vencemos
muitas batalhas, talvez guerras inteiras. Estivemos tempo por demais
fora de casa e quando retornamos, por diversas vezes, não tínhamos
mais um lar, uma família, um lugar para chamar de “seu”... Por
muitas gerações estivemos a serviço de um senhor, de uma causa, de
uma nação, de deuses e outros heróis. Vivíamos a guerra...éramos
a guerra. Não havia tempo para se pensar no longínquo amanhã, nem
horas para se lamentar a dor do ontem. A sobrevivência pela espada
ou pelos valores que nos constituíam formavam o único hálito
respirável de nossa vida de múltiplos propósitos. Muitas vezes,
nos esquecíamos de nós mesmos, éramos um nome, um lampejo de honra,
glória, mas também fracassos na penumbra da história...
A
descrição acima poderia claramente definir o drama existencial de
um bushi,
um guerreiro. O acordar de cada dia representava uma vitória da
própria vida. O espectro da morte assombrava outros recomeços que
não o seu. Viver até o fim do dia - quando se em batalha –
tornava-se o único horizonte temporal possível; o amanhã era um
luxo digno daqueles que daqui já partiram e anseiam pela nova
oportunidade de se personalizar em outro ciclo vital. Olhar para o
passado glorioso de sua família, clã ou nação era encontrar
forças para fazer com que sua alma perdurasse na memória daqueles
que expectam e materializam em livros e contos, a bravura ou ímpeto
de um momento. Olhar para o futuro é enxergar uma tela borrada de um
sumi-e
a espera de um traçado mais imortalizável do que a mera existência
daquele que olha o nanquim e vê seu próprio sangue em possível
batalha. A
única certeza é a do presente (e a de que ainda se respira e anseia
o próximo
tilintar
de armas).
Embora
a descrição possa se referir a qualquer tipo de guerreiro,
entendo-a como uma perspectiva que marcou a alma de muitos que se
encontram nos dias de hoje, em nações não beligerantes, vivendo como
apátridas, sem um lar, sem um destino traçado. Nos últimos anos
conheci muitas pessoas que assim como eu não se viam presos a lugar
algum. “Estavam” nos lugares, mas não “eram” dos lugares.
Pessoas que como eu desde tenra idade sentiam-se deslocados em suas
famílias biológicas, nas brincadeiras de escolas, no universo
profissional que uma gleba de pessoas modernas viam como promissor a
ti – dado à sua “excepcionalidade” - mas inábil a eles
próprios. Por uma época, pensávamos
que éramos piores do que todos. Em outros tempos, melhores do que a
maioria. O tempo sempre foi o juiz a nos colocar em nosso devido
lugar, apontando quando tínhamos
ou não razão nessa valoração social. Sofremos muitas vezes
calados, outras vezes protestávamos usando nosso corpo, voz ou
suposta inteligência arguta para mostrar através da exoticidade
nossa diferença e necessidade de nos localizarmos no mundo (criado
por eles outros). Choramos muitas vezes. Por vezes queríamos fazer
parte deste mundo... por outras sabíamos que daqui não
pertencíamos. Seguíamos então nossa via-crucis
em busca de uma redenção sem salvador que não fossemos nós
mesmos... Morremos e renascemos várias vezes, sem a glória de um
outro que certamente num dado momento de sua trajetória de
iluminação certamente se sentiu um apátrida (guardadas as devidas
proporções espirituais).
Muitos
de nós se perderam de vez. Percorremos caminhos sem volta, fugimos
para longe (de locais e de pessoas), mas nunca fomos capazes de fugir
de nós mesmos e de nosso drama existencial. Alguns
entenderam a condenação... outros ainda estão comprando o próximo
bilhete viário em busca da felicidade que supõem estar em algum
pico montanheiro (ou estação turística-religiosa-econômica, que
na maioria das vezes, se conectam).
Anos
atrás cometi a última grande guinada de minha vida. Foi justamente
nessa época que mais conheci pessoas com esse mesmo desiderato,
drama existencial. Mudei (abandonei) de casa, de lar, de família. Sai
de uma esfera profissional e fui para outra, de uma arte marcial
chinesa para uma japonesa, de uma crença estabelecida para a
ressignificação desta. Tive que reaprender tudo de novo, desde
novamente se relacionar com alguém diferente do que se estava
habituado, até uma postura de base de luta, uma compreensão quanto
ao limite do que seja uma técnica e um rito. Novamente, estou
prestes a uma nova mudança, dentro do mesmo caminho... A conclusão
de um doutorado e a possível estadia acadêmica
em outro pais, novos desafios no campo profissional, novas graduações
marciais e espirituais, com tudo o que isso traz de responsabilidade
e necessidade de revisão de condutas. Tudo bem para quem já
acreditou um dia ter sido um erro de calculo do grande arquiteto (sem
os poderes de distorcer a Matrix).
Trata-se de uma sobre-vida e de alguém acostumado às turbulências e
efemeridade da existência.
Retomando
ao contexto do bushi,
consigo
estabelecer dois paralelos: um meramente simbólico e outro
metafísico. Nesta perspectiva, creio já ter vivido como um
guerreiro em outras existências (várias). Isso explica o meu tenro
interesse por guerras e estruturas marciais, desde meus primeiros
anos de vida, como atestam as memórias de minha família biológica.
Coincide
o fato de muitos que conheci semelhantes a mim viverem o universo
militar/marcial. Sempre vi a vida como uma arena e não como um
palco. Não a vejo como um espaço para se interpretar um drama ou
comédia e entreter um público que insiste em “pagar meia”.
Enxergo a vida como um arena, a sociedade divida entre generais e
Ashigarus.
Minha vida tem um propósito que não se altera muito com o passar
das existências, antes, se complexifica; continuamente se equilibra
entre ser um edificador ou destruidor – dependendo da causa. Assim
vivo cada dia, tendo a espada como um símbolo e uma metáfora para o
meu ser e perceber o mundo.
Isso
certamente explica muita coisa. Desde aquele sentimento de solidão,
que vai desde o retornar na madrugada para casa e querer pegar outro
caminho que conduz ao nada, desde o acordar e olhar o ambiente a sua
volta, questionando se ainda está vivo e se aquela luz que invade o
quarto é literal ou um estado de espírito (o mesmo vale para escuridão
de horas antes). Explica o fato de não- pertencente, de sentir-se
vindo de lugar algum e indo em direção ao mais desconhecido. De não
respirar um lar, de não se ver como um líder familiar, uma
referencia moral ou estereótipo padrão que se espera de um homem
formado na sociedade. Vivi muitas vidas, morri tantas outras, pouco
retornei à minha casa após uma campanha, muitas vidas ceifei e
muitas vidas deixei de viver. Compreende-se o distanciamento do
mundo, justamente por ter abraçado o mundo por igual, lutando e
sangrando, perdendo e vencendo, nele e por ele.
Tempos
atrás esta condição de vida me atormentava mais. Foi justamente
ela que me impulsionou a todas as mudanças necessárias em minha
vida. Como disse, deixei muita coisa “consolidada” para trás. O
arrependimento é algo inerente a todos, mas a coragem de aceitar o
recomeço e assumir as responsabilidades pelas suas ações é maior
naqueles de alma guerreira. Foi assim que vivemos por tanto tempo...
e é assim que continuaremos a viver sem que a memória nos traia e o
presente se ensombreça, aprendendo a fazer o que é honesto com
nossos valores, mesmo que isso doa a outrem. Nos acostumamos ao
ceifar, mas nos habituamos ao sempre novo cultivar. Minha vida,
portanto, atualmente é um contínuo semear no terreno árido da
existência...
Hoje
não me sinto mais atormentado como outrora. Conheci outros de mim e
vi que não era único, especial e esquizoide. Compartilhamos nossos
dramas. Parei de achar que devo sempre fugir, migrar para o mais
além. Aonde quer que eu esteja, aquele frio da lâmina da solidão
sempre me invadirá. Onde quer que eu esteja, sempre estarei só,
resta eu aceitar quem eu quero que corte temporariamente essa
solidão. Muitos daqueles como eu ainda anseiam pela fuga, pelo mais
além, acreditam que o tédio de suas vidas está ligado à
limitações materiais ou geográficas, mas mau ainda conseguiram
compreender que este tédio é vazio, e a compreensão dessa
vacuidade tem jazido espiritual e nada preencherá a não ser fazer
do sempre presente uma oportunidade de deixar a sua marca no mundo,
seja como construtor ou destruidor. Novamente a causa determina...
Estou
em paz comigo. Estou harmonizando minhas crenças, encontrei meu
topos marcial,
encontro-me profissionalmente hábil a fazer a diferença na vida
daqueles que merecem (e igualmente hábil a “ceifar” aqueles
outros que não merecem, dando a oportunidade do "recomeço"). Estou neste ponto prestes a começar um
trabalho intelectual significativo para a memória da cultura que
tomei como parte espiritual. Satisfeito estou com as pessoas que
atualmente partilham minha experiência vital. Aos poucos estou
ressignificando
o ato de “servir” (outra tradução para o termo “samurai”) e
permitindo ser “servido” por aqueles que assim como eu partilham
os mesmo valores e visões de mundo. Repatriei-me,
enfim... hora de (re)começar outra nova vida...
Por
Diego San (Misawa Ha)
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