domingo, 29 de dezembro de 2013

Complexo de Aquiles (Pt. 3): O repatriamento



“De ti só se ouve dizer que abomina o mundo... só espero que não se detenhas neste abrigo transitório” (SOHO, Takuan)

Vencemos muitas batalhas, talvez guerras inteiras. Estivemos tempo por demais fora de casa e quando retornamos, por diversas vezes, não tínhamos mais um lar, uma família, um lugar para chamar de “seu”... Por muitas gerações estivemos a serviço de um senhor, de uma causa, de uma nação, de deuses e outros heróis. Vivíamos a guerra...éramos a guerra. Não havia tempo para se pensar no longínquo amanhã, nem horas para se lamentar a dor do ontem. A sobrevivência pela espada ou pelos valores que nos constituíam formavam o único hálito respirável de nossa vida de múltiplos propósitos. Muitas vezes, nos esquecíamos de nós mesmos, éramos um nome, um lampejo de honra, glória, mas também fracassos na penumbra da história...

A descrição acima poderia claramente definir o drama existencial de um bushi, um guerreiro. O acordar de cada dia representava uma vitória da própria vida. O espectro da morte assombrava outros recomeços que não o seu. Viver até o fim do dia - quando se em batalha – tornava-se o único horizonte temporal possível; o amanhã era um luxo digno daqueles que daqui já partiram e anseiam pela nova oportunidade de se personalizar em outro ciclo vital. Olhar para o passado glorioso de sua família, clã ou nação era encontrar forças para fazer com que sua alma perdurasse na memória daqueles que expectam e materializam em livros e contos, a bravura ou ímpeto de um momento. Olhar para o futuro é enxergar uma tela borrada de um sumi-e a espera de um traçado mais imortalizável do que a mera existência daquele que olha o nanquim e vê seu próprio sangue em possível batalha. A única certeza é a do presente (e a de que ainda se respira e anseia o pximo tilintar de armas). 
 
Embora a descrição possa se referir a qualquer tipo de guerreiro, entendo-a como uma perspectiva que marcou a alma de muitos que se encontram nos dias de hoje, em nações não beligerantes, vivendo como apátridas, sem um lar, sem um destino traçado. Nos últimos anos conheci muitas pessoas que assim como eu não se viam presos a lugar algum. “Estavam” nos lugares, mas não “eram” dos lugares. Pessoas que como eu desde tenra idade sentiam-se deslocados em suas famílias biológicas, nas brincadeiras de escolas, no universo profissional que uma gleba de pessoas modernas viam como promissor a ti – dado à sua “excepcionalidade” - mas inábil a eles próprios. Por uma época, pensávamos que éramos piores do que todos. Em outros tempos, melhores do que a maioria. O tempo sempre foi o juiz a nos colocar em nosso devido lugar, apontando quando tínhamos ou não razão nessa valoração social. Sofremos muitas vezes calados, outras vezes protestávamos usando nosso corpo, voz ou suposta inteligência arguta para mostrar através da exoticidade nossa diferença e necessidade de nos localizarmos no mundo (criado por eles outros). Choramos muitas vezes. Por vezes queríamos fazer parte deste mundo... por outras sabíamos que daqui não pertencíamos. Seguíamos então nossa via-crucis em busca de uma redenção sem salvador que não fossemos nós mesmos... Morremos e renascemos várias vezes, sem a glória de um outro que certamente num dado momento de sua trajetória de iluminação certamente se sentiu um apátrida (guardadas as devidas proporções espirituais).

Muitos de nós se perderam de vez. Percorremos caminhos sem volta, fugimos para longe (de locais e de pessoas), mas nunca fomos capazes de fugir de nós mesmos e de nosso drama existencial. Alguns entenderam a condenação... outros ainda estão comprando o próximo bilhete viário em busca da felicidade que supõem estar em algum pico montanheiro (ou estação turística-religiosa-econômica, que na maioria das vezes, se conectam). 
 
Anos atrás cometi a última grande guinada de minha vida. Foi justamente nessa época que mais conheci pessoas com esse mesmo desiderato, drama existencial. Mudei (abandonei) de casa, de lar, de família. Sai de uma esfera profissional e fui para outra, de uma arte marcial chinesa para uma japonesa, de uma crença estabelecida para a ressignificação desta. Tive que reaprender tudo de novo, desde novamente se relacionar com alguém diferente do que se estava habituado, até uma postura de base de luta, uma compreensão quanto ao limite do que seja uma técnica e um rito. Novamente, estou prestes a uma nova mudança, dentro do mesmo caminho... A conclusão de um doutorado e a possível estadia acadêmica em outro pais, novos desafios no campo profissional, novas graduações marciais e espirituais, com tudo o que isso traz de responsabilidade e necessidade de revisão de condutas. Tudo bem para quem já acreditou um dia ter sido um erro de calculo do grande arquiteto (sem os poderes de distorcer a Matrix). Trata-se de uma sobre-vida e de alguém acostumado às turbulências e efemeridade da existência. 
 
Retomando ao contexto do bushi, consigo estabelecer dois paralelos: um meramente simbólico e outro metafísico. Nesta perspectiva, creio já ter vivido como um guerreiro em outras existências (várias). Isso explica o meu tenro interesse por guerras e estruturas marciais, desde meus primeiros anos de vida, como atestam as memórias de minha família biológica. Coincide o fato de muitos que conheci semelhantes a mim viverem o universo militar/marcial. Sempre vi a vida como uma arena e não como um palco. Não a vejo como um espaço para se interpretar um drama ou comédia e entreter um público que insiste em “pagar meia”. Enxergo a vida como um arena, a sociedade divida entre generais e Ashigarus. Minha vida tem um propósito que não se altera muito com o passar das existências, antes, se complexifica; continuamente se equilibra entre ser um edificador ou destruidor – dependendo da causa. Assim vivo cada dia, tendo a espada como um símbolo e uma metáfora para o meu ser e perceber o mundo. 
 
Isso certamente explica muita coisa. Desde aquele sentimento de solidão, que vai desde o retornar na madrugada para casa e querer pegar outro caminho que conduz ao nada, desde o acordar e olhar o ambiente a sua volta, questionando se ainda está vivo e se aquela luz que invade o quarto é literal ou um estado de espírito (o mesmo vale para escuridão de horas antes). Explica o fato de não- pertencente, de sentir-se vindo de lugar algum e indo em direção ao mais desconhecido. De não respirar um lar, de não se ver como um líder familiar, uma referencia moral ou estereótipo padrão que se espera de um homem formado na sociedade. Vivi muitas vidas, morri tantas outras, pouco retornei à minha casa após uma campanha, muitas vidas ceifei e muitas vidas deixei de viver. Compreende-se o distanciamento do mundo, justamente por ter abraçado o mundo por igual, lutando e sangrando, perdendo e vencendo, nele e por ele. 
 
Tempos atrás esta condição de vida me atormentava mais. Foi justamente ela que me impulsionou a todas as mudanças necessárias em minha vida. Como disse, deixei muita coisa “consolidada” para trás. O arrependimento é algo inerente a todos, mas a coragem de aceitar o recomeço e assumir as responsabilidades pelas suas ações é maior naqueles de alma guerreira. Foi assim que vivemos por tanto tempo... e é assim que continuaremos a viver sem que a memória nos traia e o presente se ensombreça, aprendendo a fazer o que é honesto com nossos valores, mesmo que isso doa a outrem. Nos acostumamos ao ceifar, mas nos habituamos ao sempre novo cultivar. Minha vida, portanto, atualmente é um contínuo semear no terreno árido da existência...

Hoje não me sinto mais atormentado como outrora. Conheci outros de mim e vi que não era único, especial e esquizoide. Compartilhamos nossos dramas. Parei de achar que devo sempre fugir, migrar para o mais além. Aonde quer que eu esteja, aquele frio da lâmina da solidão sempre me invadirá. Onde quer que eu esteja, sempre estarei só, resta eu aceitar quem eu quero que corte temporariamente essa solidão. Muitos daqueles como eu ainda anseiam pela fuga, pelo mais além, acreditam que o tédio de suas vidas está ligado à limitações materiais ou geográficas, mas mau ainda conseguiram compreender que este tédio é vazio, e a compreensão dessa vacuidade tem jazido espiritual e nada preencherá a não ser fazer do sempre presente uma oportunidade de deixar a sua marca no mundo, seja como construtor ou destruidor. Novamente a causa determina... 
 
Estou em paz comigo. Estou harmonizando minhas crenças, encontrei meu topos marcial, encontro-me profissionalmente hábil a fazer a diferença na vida daqueles que merecem (e igualmente hábil a “ceifar” aqueles outros que não merecem, dando a oportunidade do "recomeço"). Estou neste ponto prestes a começar um trabalho intelectual significativo para a memória da cultura que tomei como parte espiritual. Satisfeito estou com as pessoas que atualmente partilham minha experiência vital. Aos poucos estou ressignificando o ato de “servir” (outra tradução para o termo “samurai”) e permitindo ser “servido” por aqueles que assim como eu partilham os mesmo valores e visões de mundo. Repatriei-me, enfim... hora de (re)começar outra nova vida...

Por Diego San (Misawa Ha)