Recentemente
assisti a um filme que me chamou muita atenção. Seu título era “As aventuras de
Pi”. De fotografia bela e situações improváveis, a narrativa do filme (que
depois descobri ser uma adaptação cinematográfica) se desenvolve em torno da
sobrevivência de “Piscine Patel” após o naufrágio da embarcação que
transportava da Índia para o Canadá toda sua família e propriedades: um zoológico
inteiro. À deriva sob uma jangada improvisada anexada a uma pequena embarcação
contendo suprimentos e, pasmem, um tigre de bengala não domado, o protagonista
busca a sobrevivência sem perder a (múltipla) fé, enfrentando um mar revolto e
uma biodiversidade ímpar.
No
entanto, o que me despertou no filme tem haver com a própria obviedade da
história – o que talvez tenha desagradado parte daqueles que foram em busca de
um “As aventuras de Gulliver” e não de uma película que nos conduz a refletir
sobre nossa religiosidade ou quanto àquilo que queremos julgar como versão
correta e unívoca para nosso sistema conveniente de crenças.
Na
história o personagem passa pela assimilação de uma série de valores religiosos
e sistemas de crenças, sem, contudo, questionar a possível incoerência entre
estes. É curioso, pois há em certo momento um questionamento interno, de força
maior do que um possível externo. Ou seja, há um questionamento sobre a
motivação de Cristo ou de Deus quanto à parúsia,
mas não há, entretanto, um questionamento se a teleologia cristã contradiz o
politeísmo hindu, o cabalismo judaico
ou o ritualismo islâmico – vertentes estas assimiladas e compartilhadas
concomitantemente pelo personagem.
A
historia é narrada pelo protagonista (já mais velho) a um jovem escritor que
pretende fazer de sua biografia uma obra literária. Segundo o que fora contado
a este, a história de “Pi” (abreviação idiossincrática do nome do personagem) o
faria recobrar sua fé em Deus. De modo lúcido, Pi nega essa possibilidade, deixando claro que sua história poderia
apenas inspirar, talvez mais do que servir de testemunha para a atestação do
suprassensível. De fato, a sobrevivência do personagem poderia ser tida como
milagre, dado à sua impossibilidade frente aos elementos descritos na
narrativa. Em suas “embarcações”, Pi não
se depara apenas com as tortuosidades do mar (limitação de água doce, sol
escaldante, feras marinhas, etc), mas com a “companhia” inicial de uma hiena,
um orangotango, uma zebra e um tigre de bengala. A sobrevivência de Pi depende da morte paulatina destes e
da contenção da natureza de um tigre – que o acompanha e resignifica sua
“viagem”. Contudo, o que está em jogo para a “comprovação da existência Deus”
não é o “milagre” em si, mas a maneira como este (ou isto) é apresentado pelo
personagem ao jovem escritor: Deus trata-se de uma evidência filosófica que
escapa ao domínio do empírico, no entanto, o que está em questão é qual
“versão” melhor lhe apetece acerca deste “fato”. Este é o mote do filme e o que
justifica a concomitância de crenças de Pi.
Para ele, Deus é evidente e se manifesta de formas distintas paras as pessoas,
cabendo a estas escolherem suas melhores versões. A ele, todas as
histórias/versões são belas (e porque não verdadeiras?)...
Trazendo
para meu universo, sinto que me identifico com Pi. Todas as versões que ouço de Deus soam a mim como elas
realmente se configuram: belas metáforas. Estão longe, no entanto, de se
configurarem como sistemas coerentes, logicamente válidos. Para mim, Deus é uma
evidência filosófica e isto basta. Podemos no máximo dizer o que Deus não é,
mas dizer o que ele seja é muita pretensão intelectual a um passo do fanatismo
derivadamente excludente.
Penso
que o principal erro de quem se arvora a uma teologia – mais do que julgar a
sua como a única e, portanto, verdadeira “versão” de Deus – diz respeito à
própria questão que orienta uma possível resposta metafísica. Julgo que Deus é
uma questão ontológica e que não faz sentido perguntar pelo “quem”, mas antes
pelo “o que” é Deus (ou o que “não” é Deus). Quando perguntamos por quem é
Deus, em certa medida, estamos pessoalizando “algo em alguém” e como a história
das religiões nos mostra, quando assim o fazemos estamos antropomorfando Deus, ou, subvertendo a metáfora cristã, fazendo Deus à “imagem e semelhança” do
homem.
Quando
lemos o “velho testamento” a concepção de um Jeová calha muito bem à natureza belicosa do povo hebreu, ávido por
guerra a fim de conquistar seu suposto direito de terra. Diferente, portanto,
de um possível Deus “neotestamentário” de bondade que é capaz de sacrificar seu
“único” filho em prol de uma humanidade torpe – atitude esta completamente
contraditória com um Deus que envia um dilúvio como instrumento de higienização
da iniquidade de sua criação. No entanto, quando se observa a identidade do povo
hebreu sob o domínio do Império Romano - já após os dois êxodos - é de se
compreender a ideia de uma divindade “restauradora” (o messias judaico) ou
“expiadora” (o messias cristão). Deus, portanto, se configura para além do que
possivelmente é, mas a cargo daquilo que os homens anseiam que ele seja (ou
resultante de seu complexo existencial, a cadeia própria de significados
culturalmente estabelecidos pelo contexto em questão) Parafraseando Freud ao dizer
que “quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo”, quando os
homens falam de Deus, está mais em questão o que eles próprios sejam, aspiram,
anseiam, do que realmente este, de fato, o é...
Talvez
seja esta a razão pela quais muitos se afastam da religião ou, de modo mais
radical, da crença em Deus. Um mínimo de razoabilidade nos faz perceber que os
diversos sistemas de crenças “evoluem” ou se desenvolvem/complexificam aos
cargos da cultura e sempre representam as próprias visões de mundo de uma dada
sociedade. Além disso, há ainda a multiplicidade dos fenômenos psíquicos ou
mesmo dos ditos “milagres” que muitas vezes comportam várias outras explicações
ou versões e não somente aquelas convenientes à um dado sistema de crenças.
Melhor explicando, mesmo que certos fenômenos pudessem ser de fato
parapsíquicos, espirituais, mediúnicos ou miraculosos, eles só apontariam para
uma necessária dilatação de nossa compreensão de realidade, dimensão ou cosmo e
não necessariamente da atestação de um sistema teológico ou narrativa
específica. Desta forma, podemos admitir um milagre, mas não necessariamente
uma intervenção de uma “entidade” específica. Podemos até admitir a existência
de um complexo espiritual, sem, contudo, termos que aceitar a ideia de um
céu/inferno/purgatório, etc. Se Deus realmente existe, mesmo enquanto pessoa,
com certeza ele é algo muito mais transcendente do que nossa capacidade de
interpretação seja hábil a compreender e se manifesta subliminarmente na vida
de todos independente da crença ajuizada desta ou daquela
pessoa/grupo/sociedade. As religiões seriam, doravante, instituições de
pretensas “patentes de narrativas” sob as outras, nada mais... Qualquer pessoa
minimamente esclarecida ou para além de um radicalismo obtuso é capaz perceber
estes meandros...
Já
passei por vários sistemas de crenças; nasci num lar cristão, frequentei da
catequese/missa a cultos protestantes e “sessões de descarrego”, passei um
tempo (por experiência familiar) frequentando terreiros umbandistas até que na
adolescência tardia me identifiquei com o Kardecismo,
do qual militei por quase quinze anos, moldando meu caráter e conferindo um
sentido existencial válido até os dias de hoje. Nos últimos anos, retomei a
algo que sempre me chamou a atenção desde as primeiras idades: o orientalismo.
Andei estudando sobre o Zen Budismo e
pela minha experiência budoka, venho
buscando compreender certos elementos do Shugendô.
Vale mencionar que minha formação acadêmica é na área de humanas (Filosofia e
História), portanto, assim como é de praxe nestes cursos, já transversalizei muito com correntes cético-ateias/materialistas,
assim como essencialistas, monistas
ou fideístas. Desta forma, o
fenômeno/objeto religioso sempre fez parte de minha vida, seja vivencialmente,
intelectualmente/criticamente ou até “empiricamente”, como atesta somente a mim
a minha experiência parapsicológica. (vale mencionar que nunca me afastei da
prática mediúnica espírita, embora não me identifique mais com o aspecto
institucional ou filosoficamente cristã do Kardecismo
brasileiro).
Todas
estas experiências, ora conceituais, ora vivenciais, ajudaram a formatar minhas
crenças... Mas antes, me levaram – a partir de uma postura crítica – a assumir
uma posição cética em relação às narrativas cosmogônicas, não negando o objeto
em questão, mas admitindo que uma narrativa seja sempre uma perspectiva (quando
há uma boa fé) a partir de uma experiência na maior parte das vezes subjetivas
sobre algo que acredito transcender nossa capacidade de entendimento.
Pelas
minhas vinculações ao orientalismo (por ser um budoka) e ao Kardecismo
(pela minha experiência mediúnica) tomo como fato a possibilidade de
transcendência da consciência após a morte física, da possibilidade de
intercâmbio parapsíquico, da existência de um cosmo/tao/chi inerente às todas as coisas existentes, assim como
outras conceituações de caráter metafísico. Isto, no entanto, não significa que
aceito integralmente as explicações que me são ofertadas ou intuídas, ao
contrário, me vinculo, antropologicamente, àquelas que mais calham com minha
personalidade e expectativa de mundo ideal. Quanto a isso, sou honesto em
admitir a fragilidade de todas as minhas crenças, assumindo sempre a postura de
“hipótese” mais do que de “fato”, de “epoqué”
mais do que “evidência”. Isto me afasta do fanatismo e me aproxima de minha
humanidade... Afasta-me de um radicalismo inerente às religiões, do ponto de
vista formal, e me aproxima de um sentido filosófico/conceitual muito mais
próximo do ao de religare. A questão ontológica
para mim diz muito mais respeito a um constante buscar por perguntas muito mais
do que por respostas e me contentar provisoriamente (sem imposições a outrem)
com aquelas metáforas que mais me parecem belas...
Retomando
ao filme, ao Pi narrar sua epopeia em
alto mar ao escritor é questionado sobre a veracidade de suas historias,
sobretudo quando ele oferta duas versões para um fato (embora haja uma conexão
simbólica entre ambos). O fato era a improbabilidade de sua existência. A
versão era o “como” ele sobreviveu a isto. Ao perguntar para o escritor qual
das versões este mais gostou, o mesmo afirma a mais improvável. Neste caso, o
“improvável” não é o impossível, mas o “difícil de acontecer”. No entanto, na
narrativa, esta versão foi a que mais apeteceu ao ouvinte e fez mais sentido
frente às reais motivações vitais do personagem principal...
Posso
tomar Deus como um fato, ou melhor, como uma hipótese filosófica. Pode ser a
mais improvável para explicar a complexidade organizacional da natureza, mas
não significa que não seja possível. Quanto ao que Deus seja não faço ideia...
Quanto ao “quem” ele é, desconfio de todas as narrativas... Quanto ao que ele
não é, julgo ter muitas evidências... Quanto ao que ele representa para mim,
isto resume todo o sentido do filme: o desconhecido que se apresenta como
possível e se torna belo aos meus olhos no limite de minha conveniência... A
minha vantagem: não creio que Deus seja “alguém” e isto diz muito, pois ao
coloca-lo como “algo” ou como “possível”, isto abre intelectualmente uma porta
para o desconhecido e me livra temporariamente do radicalismo de achar que
minha versão é a única e, portanto, verdadeira, ao mesmo tempo em que me afasta
de uma conveniência em negar tudo aquilo que não compreendo ou meramente
rechaçar algo simplesmente porque todos se equivocam ao impô-lo.
Att. Diego A.